Pixie
Wednesday, May 26, 2010
  * QUEBRA-CABEÇA
Ele estava sentado num banco de praça, segurava o queixo com a mão e tinha o olhar distante. Naquele mosaico de concreto ele via muito mais do que ladrilhos no chão.
A ansiedade era palpável em seu rosto fechado, nas suas pernas inquietas e no jeito como coçava a cabeça que de forma alguma queria ficar quieta.
Ele pensava sobre o dia de ontem. Passava e repassava àquelas cenas tentando entender o que tinha acontecido, tentando buscar uma explicação, uma razão.
Sempre fora uma pessoa cautelosa e consciente. – Um homem bastante racional, é o que ele diria se lhe perguntassem quem é. Mas, ontem, a razão lhe fugiu.
O que aconteceu não foi pensado, foi sentido, foi além de sua alçada; e agora, nada mais fazia sentido.
Ele estava como que dividido no meio: um pouco dele estava nas nuvens, e a outra parte estava sentada naquele banco com os pés e os olhos no chão. Metodicamente ele tentava juntar suas partes, mas a leveza de uma insistia em inebriar a firmeza da outra.
Eu o observava de longe, vi a contradição contorcer seu rosto enquanto ele tentava encaixar tudo de forma precisa, quadrada e perfeita. Vi a dualidade dentro dele duelando entre si, vi tudo que se passava em seus olhos transparentes e distantes; e tudo que enchia a sua brilhante cabeça dura. O dia de ontem... o maldito (ou bendito) dia que bagunçou suas convicções e o deixou dividido, partido, quebrado.
Observá-lo era angustiante, mas mantive meu olhar - empático e curioso – sobre ele durante todo seu complexo processo de pensar o sentido. Foi assim que peguei o momento exato em que ele se irritou com todas aquelas peças que não mais se encaixavam e começou a juntar tudo de qualquer jeito, uma por cima da outra, uma através da outra; ele as misturou e uniu até confundi-las. Foi lindo vê-lo vencer a gravidade. Nessa hora ele impulsivamente esmurrou o banco da praça e se levantou para falar uma das palavras mais sábias já pronunciadas:
- Ah... Que se foda!
Abriu um sorriso e saiu andando leve.
 
Friday, May 14, 2010
  * POR UM VELHO CAMINHO
O sol bate na janela e sem permissão adentra o quarto, anunciando um novo dia. Ela calmamente abre os olhos, da mesma forma que abrira dezenas de milhares de vezes nos últimos 72 anos. - Este será um dia atípico, ela subitamente pressente. - Quer dizer, pressente melhor, o mais atípico que uma quarta-feira pode vir a ser para uma velha cansada e gasta como eu.
O velho deitado ao lado dela ainda dorme profundamente. Tão em paz, tão distante, tão alheio a qualquer problema lá fora - tão tudo isso - que a velha, com um suspiro, decide deixá-lo sonhando mais um pouco.
Ela acha ele confortável, sempre lá, sempre o mesmo. Ela sabe o que esperar dele, e o que não esperar também. - E é tão bom saber, ela pensa, tão adequado. Ela, que sempre gostara do confiável e constante, via nele uma poltrona reclinável.
A velha, então, veste as suas gastas pantufas de pano e coloca o pé esquerdo no chão, depois, trocando-o pelo direito, que logo é seguido pelo esquerdo; a velha caminha para fora do quarto, como sempre, com o pé errado.
E assim, meio sem querer, meio sem por que, sem nem ao menos pensar aonde quer chegar, ela deixa-se levar. E certamente iria parar na cozinha, onde geralmente começam todos os seus dias, se este fosse mais um típico dia dentre seus tantos outros dias. Mas hoje, seu destino será outro; hoje, a velha seguirá por um rumo que a levará muito além da tipicidade da chaleira, do fogão e do café com biscoito.
Enquanto ainda caminha por seu habitual caminho, a velha toma uma atitude inesperada e, de repente, desobedece aos seus pés e pára. Olha em volta e vê a sala toda limpa e organizada: com o mesmo vaso de flores de plástico sobre a mesma mesa de quatro lugares, o mesmo sofá coberto com uma mantinha de tricô para esconder as manchas acumuladas ao longo dos anos, e, no corredor, o mesmo tapete de sempre trilhando um caminho tão colorido e triste.
Ela pára sobre toda aquela mesmice e sente-se muito, muito velha. Ela sente que a morte está à espreita, só observando e esperando; sentindo-se, por fim, indignada consigo mesma por ser tão acomodada e nunca fazer nada, a velha enche seus pulmões com coragem e de forma obstinada decide, ali mesmo, viver o máximo que puder com todas as forças que ainda tiver todo o pouco tempo que lhe resta neste mundo tão grande que, por tantos anos, pareceu tão pequeno.
A partir de hoje, é ela quem controla os próprios passos e decide o próprio destino. Pisando forte e direito, a velha abre a porta da casa e sai para a varanda. Ela mora na praia.
Ela senta em uma cadeira esquecida e a torna sua preferida. Senta e observa o mar... observa enquanto àquela imensidão azul perde-se no infinito e, delicadamente, beija o céu no horizonte. Observa enquanto o vibrante sol toca as ondas do oceano com seu toque de Midas e as faz ainda mais preciosas. Espirais de espuma dourada pulando do mar para a areia, embaladas pelo eterno vai e vem que tudo cria, destrói e recria. Por um instante, ela abre seus olhos para o sol e sente-se preencher. Agora, cheia de amor, ela caminha pela praia deixando-se dourar, deixando-se elevar... levada por toda aquela luz.
Agora, a velha está ali: no meio de tudo, sendo parte do todo. E, por um instante, ela é plenitude.
O velho, que até então dormia confortável e totalmente alheio do mundo, abre seus olhos. Ele preguiçosamente calça suas pantufas e estaria pronto para começar seu trajeto até a cozinha, se este fosse mais um típico dia; mas, como já sabemos, este não é apenas mais um dia entre tantos. Hoje, ao colocar o pé para fora da cama, o velho pisa em algo que interrompe seu caminho. É a pantufa da velha, a do pé direito. A esquerda, ele encontra ainda no pé dela, jogada no chão, como ela.
 
É...acho que isso prova que fui alfabetizada. E só.

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